quarta-feira, 29 de março de 2017

Pega-tudo.

para pegar o rato
espalhe pela casa várias daquelas
cartelas cheias de cola
escolha os cantos os
lugares onde com certeza
vai juntar muita sujeira
e quando escutar o barulho
agudo
do chiado do bicho
pronto
em posse de uma bolsa plástica
segure a cartela com o rato grudado
e enfie toda dentro de uma outra
bolsa de plástico
dessas de lixo mesmo
é normal que a sacola acabe
grudando um pouco
por causa de
como ele se debate
aí você pode enfiar tudo
dentro de um outro saco
desses de lixo mesmo
só não esqueça de amarrar
bem forte as alças da sacola
pra não passar ar
e de escolher um saco
que não seja transparente
assim ninguém vê
o que tem lá dentro

terça-feira, 28 de março de 2017

A pisadeira.

Sempre que estava ansiosa, se masturbava. Aprendeu que era assim: só tinha forças pra levantar da cama e começar o dia se gozasse, ali, sozinha. Fantasiava todas as migalhas de afeto ou de sacanagem que já haviam lhe jogado  e comia do chão. Suava toda a cama e depois sentia vergonha.
Às vezes não achava as lembranças. Não gozava. Não levantava da cama. Cochilava, acordava, botava a mão na calcinha. Não gozava, mas sentia vergonha.
Parece que tem dias que são feitos pra passar na cama.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Trecho.

queria chamar de gastrite
mas o que você faz com o meu estômago
não deve ter sido ainda
catalogado pela medicina

as borboletas dentro de mim
mais parecem cavalos correndo
soltos no campo aberto 
dos meus órgãos internos

quarta-feira, 15 de março de 2017

Visão periférica.

se fôssemos cachorros,
perceberíamos:
o caco sempre está cheio
quando o humano decide
dar-lhe veneno.

terça-feira, 14 de março de 2017

Tornozelo.

não sei se o amor é uma pedra
no meio do meu caminho
ou se a pedra sou eu
insistentemente fincado
imóvel, feito estátua
como quem, incerto,
anseia tanto pela solidão
que com as própria mãos
pega a corda, ata o nó
e se ancora
finalmente só
no meio do deserto

quinta-feira, 9 de março de 2017

Os vestidos dos poemas sempre são azuis.


as cortinas do apartamento
têm o mesmo balanço
daquele seu vestido azul
acho que é o mesmo tecido
as cortinas
e o vestido
um dos seus preferidos

agora balançam sozinhos os panos
sem a presença de suas pernas
atravessadas bem no meio
do buraco das roupas

posso amarrar a cortina
em volta da minha cintura
mas em nada as minhas pernas
parecem
com as suas

segunda-feira, 6 de março de 2017

Te escrevo dos trilhos de um trem.

te escrevo dos trilhos de um trem
da beira de um penhasco
como quem entorna inteiro 
um frasco de veneno
no intuito de molhar os lábios
te escrevo as tesouras sem ponta
e os bisturis mal amolados
te escrevo da tela
novinha em folha que comprei
pra revestir a janela
do décimo sétimo andar
das faixas de pedestre apagadas
mas percebidas de última hora
como o remédio errado 
colocado pra fora
te escrevo bem de perto da saída de emergência
dos chumbinhos vencidos
das ambulâncias pontuais
e dos cortes profundos
com folhas de papel ofício
te escrevo dos buracos rasos
dos incêndios em galpões vazios
das quedas livres sobre camas elásticas
e da respiração boca-a-boca que você me faz
quando eu finjo que me afogo

domingo, 5 de março de 2017

Escrita automática IV

equilibro-me sobre a sola dos meus pés
entrego-me muito pouco
estou sempre à beira
ouço as paixões ondularem, sereias,
mas se aceno
escondo os olhos

encalhei no meio do oceano
não sou terra firme pra ninguém
afogo só as pontas dos dedos
pra levá-los à boca
e sentir o gosto salgado
como aqueles que ousam mergulhar
e se perder de vista
no fundo do amar

Recital de poesia.

todos entram
sentam
pomposos em seus trajes de gala
eis que desliza a cortina
revelando uma pequena menina
e sua única fala:
- Quero muito um hamburgão!
a cortina é novamente fechada
e depois de ovacionar a menina
a multidão parte em disparada
para o Marcinho Lanches, logo na esquina