quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Impasse.

Estavam sozinhos apenas os dois. Ora se fitavam, ora fitavam o chão, ora fitavam o céu. Ora brotavam as lágrimas, ora brotavam os risos, ora não estavam mais lá. Ora se aproximavam, ora se repeliam, ora nem se notavam.
E seja lá qual fosse o impasse que impedisse o entrelace de seus braços, de seus corpos, de suas mentes, de suas almas... Desconheciam o que os afastava cada vez mais, mais pra longe. E o que os aproximava por vezes, mais pra perto.
Ambos tinham esse poder de amar a tudo e a todos, mas de escolher apenas um ao outro para se entregar em totalidade.
E quando se afastavam, já não era a mesma coisa. Reservavam-se em si mesmos e seguiam um para cada lado, esqueciam-se. Para que, num reencontro, pudessem libertar-se de tal prisão sem rodeios, sendo o que realmente são: amantes. Isso os resumia melhor que qualquer outra coisa.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A pianista.

Espreitando à porta entreaberta, vislumbrei-a enquanto se entretia no seu passatempo. De olhos fixos ia percorrendo as teclas, arrancando os mais lindos tons. Arrancando-me grande sensação de paz, seguida de uma inquietude angustiante.
Se movia graciosamente, sem perder os selvagens olhos, que nada fitavam e que tudo notavam. Não intimidou-se com minha presença, não. Prosseguiu com dedos firmes, olhos firmes, corpo firme. Sua postura mantinha tal retitude que chegava a ser dolorosa de se ver.
Vestia um vestido elegante, mas que se escondia sob a sua própria elegância; mesmo se estivesse enfiada em trapos não perderia este encanto nos trejeitos.
Os cabelos esvoaçantes enchiam o cômodo de um aroma doce, mas não desagradável, não. Era quase anestésico. Me fazia querer fitá-la por quanto tempo desse, até que o dia se fosse ou o mundo desabasse.
Quando o som parou, ela virou-se em minha direção, com feição doce, jeito doce, fala doce, mas olhos incrivelmente expressivos. Sua voz era agradável a ponto de me provocar estremecimentos.
- Sim?
Tratei de mexer-me, quebrando o aparente transe em que me encontrava.
- Toca muito bem, senhorita.
- Obrigada. - disse ela, numa curvatura tímida. Sorriu e convidou-me a sentar-me ao seu lado e ouvi-la tocar. O que fiz de bom grado.
Foi a primeira mulher pela qual me apaixonei, a pianista. Contudo, fora a mais ardente das paixões, mesmo que tivesse durado apenas umas poucas horas. Não me importava o período que eu a tinha palpitando em meu peito, mas sim a intensidade disso.
E aquela música, dela eu nunca me esqueci, nunca.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Guarda-chuva.

As nuvens choravam o seu pesado pranto, gritavam, luziam. A garota permanecia encolhida debaixo de um guarda-chuvinha cinza que mal se destacava através da cortina de lágrimas que despencava sobre tudo.
Ela estava abatida, assim como eu. Mesmo que a chuva tentasse esconder, a tristeza emanava dela, atravessava a barreira d'água e antigia-me em cheio. E vice-versa, eu sabia.
Nos fitamos daquele jeito por muito tempo, sem movimento, sem gesto algum.
- Você está se molhando. - disse em voz alta, quebrando o silêncio antes quebrado apenas pelo ruído dos pingos se espalhando pelo chão.
Assenti um tanto quanto envergonhado. Só um completo babaca esqueceria o guarda-chuva numa tarde como aquela. Numa tarde inesquecível como aquela.
Dirigiu-se até mim e me deu espaço sob a proteção dela, que era pequena, mas era o suficiente.
Seguimos um caminho incerto sem dizer palavra. Não escutávamos a tristeza um do outro, não; escutávamos a chuva, apenas a chuva; as lágrimas do céu. E essa melancolia era de tal grandiosidade que encobria as nossas próprias e apagava-as.
E impelidos por tal infelicidade é que construímos tais silenciosos passos, sustentando um a dor do outro, mesmo que as mesmas fossem desconhecidas do alheio. Não importava.
A tristeza foi sempre isto: um caminho sem fim, sem fundo. Onde você afunda, se afoga e acaba impregnado. Os tristes são como o céu: calmos, até que venha a tempestade. Até que os olhos cedam. Até que tudo transborde.
E transbordávamos os três: eu, ela e o céu; a única testemunha.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Fogo.

Desesperei-me ao perceber que já não podia ver os olhos dela em meio a todo aquele fogo. Não podia ver se ainda me fitavam do mesmo jeito, aquelas duas e delicadas bolinhas azuis. Apenas os seus gritos eu podia ouvir, quando os meus próprios não eram tão altos. Perguntei-me se as chamas queimavam as suas pernas ou os braços, talvez. Perguntei-me se sentia o mesmo que eu, a mesma dor intensa. Talvez até nisso fôssemos iguais.
Procurei-a sobre rastejos, estendi-me até onde a dor me deixara ir. Como estaria o rosto dela a essa altura? Talvez até nisso fôssemos iguais.
Quando encontrei-a, junto ao chão, os seus olhos ainda estavam molhados porém, sem expressão alguma. Ela virou-se para mim, num movimento agonizante e eu vi todo aquele sangue que manchava o seu rosto.
- Eu te amo. - balbuciamos ao mesmo tempo, um para o outro, salvando-nos um ao outro da dúvida.
Era só o que precisávamos ouvir, antes que o teto despencasse sobre as nossas cabeças.